Ombros sustentam o peso da corda. Pés caminham lentamente ao longo da procissão, muitos descalços. Há pés que caminham quilômetros até Belém. Mãos carregam promessas, casas na cabeça, distribuem água para a multidão sedenta. Os olhos observam a imagem na Berlinda, vertendo lágrimas. Lábios se movem em oração uníssona, vozes ecoam músicas em homenagem a Ela. Do que é feito afinal o Círio? Peito, unhas, dentes, alma, coração. Até mesmo estômago, que não resiste a maniçoba no prato. Em cada parte do corpo, corre a energia do Círio.
O Círio é feito de fé, de tradição, de histórias, hábitos e memórias passadas através das gerações. Paraense assiste ao Círio desde criança, faz parte da infância. E cresce construindo seu próprio jeito de viver o Círio. Círio é feito de pequenas tradições: amarrar fitinhas no pulso para fazer pedidos, comprar a camisa do Círio, pendurar o cartaz na porta de casa. Sair na sexta-feira à noite cedinho para pegar um bom lugar na calçada para ver o Auto do Círio passar, ninguém quer perder nada do espetáculo, o céu se enchendo de luzes e música. No sábado acordar para ver a Romaria Fluvial chegar e logo depois, colocar o chapéu de fitas na cabeça para dançar ao som do Boi Pavulagem, estrelinhas tão cintilantes que brilham em plena luz do dia. Porque o Círio é feito de cultura e arte.
É voltar para a casa cedo porque ainda tem a Trasladação. São 2 milhões de pessoas seguindo a Berlinda, segurando a corda, numa procissão cheia de luzes, fogos, cores e cânticos. É uma noite em que Belém não dorme, porque logo mais, no dia seguinte é a saída do Círio. E se quiser pegar um lugar na corda, é preciso estar lá de madrugada. Algumas pessoas já começaram a sua própria romaria às 3h da manhã, de joelhos. Círio é feito de uma força imensa que vem do coração. O Círio é feito de devoção.
O Círio é feito de lugares que carregam história e memórias afetivas, como as Igrejas, o Colégio Gentil, o “Largo de Nazaré”, que nem tem mais esse nome, mas é assim que muita gente ainda o chama. O Círio é feito também de acolhimento. O maior milagre de Nossa Senhora de Nazaré é a união. Das crenças, das raças, das classes sociais. Descalços na corda, todo mundo é igual. Às vezes a devoção está em ajudar o outro, distribuindo água, prestando socorro voluntariamente.
O Círio é feito do povo que torna palpável o que é invisível aos olhos: a fé. E por trás de cada símbolo, de cada procissão, de cada homenagem, de cada detalhe existe um coração pulsando, uma cabeça pensando, um alguém colocando em prática e levando às ruas a maior procissão católica do mundo. Da Diretoria da Festa, aos anônimos e voluntários, ao artesão do miriti, a cozinheira que ferve a maniva por 7 dias, a bordadeira do manto. Independente das ferramentas, das dificuldades, dos recursos, uma coisa é certa: O Círio é feito de cada ser humano. Os quase dois milhões de fiéis que preenchem as ruas como se fossem o sangue correndo nas veias da cidade. Belém é um único corpo nutrido por devoção e força impressionantes.
Círio é feito de tantas forças intangíveis que nem mesmo os anos pandêmicos, assolados pela covid-19 foram capazes de o parar. Com as procissões e eventos suspensos, missas feitas a portas fechadas e transmitidas pela internet e pela TV, ainda assim, cada paraense viveu o seu Círio em casa, da sua forma, à distância. Alguns preferiram fazer o trajeto sozinho, em silêncio, portando máscaras. Foi um dos momentos em que o Círio mostrou a força do seu significado.
O Círio é isso. Mais que matéria. É alma.
Luly Mendonça